Até o século XVII, a Bíblia era considerada absolutamente
como palavra ditada por Deus. Partindo do conceito de inspiração bíblica como
sendo um ditado, ninguém duvidava de nada. Esta compreensão havia sido tema de
inevitáveis e incontáveis polêmicas interpretativas.
A partir de 1776, começou a ser despertada uma crítica do texto
bíblico, motivada pelos problemas levantados pelos filósofos racionalistas. O
racionalismo já estava influenciado pelo iluminismo, defendendo a
auto-suficiência do homem e começou por negar no Evangelho tudo que era
transcendental, restando assim pouca coisa. Esta crítica causou grande
constrangimento no meio do cristianismo.
O racionalismo queria demonstrar seu ponto de vista através
da crítica textual. O trabalho deles despertou os evangélicos para fazerem o
mesmo, mas enfatizando o outro lado, ou seja, a defesa da fé. E eles concluíram
que a mesma critica literária tinha possibilidades de ajudar a entender melhor
o Evangelho. Contribuíram para isto os progressos das novas ciências da
psicologia e da arqueologia. Então surgiu o método crítico-histórico, que
começou a ser usado no sentido positivo pelos teólogos cristãos.
Foi então, no século XVIII, descoberto o assim chamado
problema sinótico. O estudo crítico demonstrou que no texto dos evangelhos há
divergências e diferenças que evidenciam o trabalho pessoal do escritor, sem
deixar de lado a inspiração divina. Desde então, os exegetas se viram na
contingência de considerar o Evangelho como um livro escrito por homens, que
têm suas qualidades e seus defeitos, e estão sujeitos também à critica. Surge então
a chamada crítica textual.
O problema sinótico se funda na constatação de que os três
primeiros Evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) têm muitos aspectos em comum; por
outro lado, têm também muitas diferenças. As semelhanças chegam a ser desde
palavras a textos inteiros. As diferenças estão no fato de alguns narrarem
certos detalhes e outros omitirem, além de haver discrepâncias em alguns
detalhes.
Colocando Em Números, O Problema Sinótico Apresenta-Se Da
Seguinte Forma:
a) Dos 661 versículos do Evangelho de Marcos, 600 estão
também no de Mateus, e 350 estão no de Lucas.
b) O evangelho de Mateus e de Lucas tem 240 versículos em
comum, e que não constam no Evangelho de Marcos.
c) Além disso, tanto Mateus como Lucas tem versículos
próprios a cada um.
Como exemplos destas semelhanças, podemos citar uma passagem
no qual Marcos descreve assim: caindo a tarde, quando o sol descia...; no
Evangelho de Mateus está apenas a primeira parte; no de Lucas está a segunda.
Há diversas outras passagens assim, como no episódio do marido que morreu sem
deixar descendência.
Descoberto o problema, procurou-se interpretar. Isto se
tornou difícil, porque ao lado de grandes semelhanças, há também contrastes.
Como se pode explicar isto? No caso da infância de Jesus, por exemplo, Marcos
não diz nada. Mateus diz alguma coisa, enquanto Lucas apresenta diversas
informações.
Numa concepção tradicional, não haveria esta dificuldade,
porque todos acreditavam que os apóstolos ouviram tudo de Jesus e depois
escreveram o que sabiam e que eles haviam usando por isso até as mesmas
palavras. Mas descobriu-se que os Evangelhos foram escritos bastante tempo
depois da morte de Cristo, em épocas diferentes, baseados em tradições orais.
Como pode ter acontecido que os Evangelistas usaram as mesmas palavras, estando
em lugares diferentes e até em épocas diferentes?
Aí a crítica histórica entrou em ação e surgiram várias
explicações. Ainda no século XIX, dava-se como resposta que Mateus teria sido o
primeiro a ser escrito. Mas Mateus é um texto muito elaborado e deve ser de
época posterior. Além disso, não foi escrito em aramaico, como se pensava, mas
seu original é em grego. Portanto, não é aquele do qual Eusébio noticia, que
Mateus escrevera em aramaico e cada um entendeu e interpretou como pôde.
Posteriormente, explicou-se que haveria uma fonte ou tradição
oral bem antiga, e baseado nesta tradição cada autor escreveu os fatos ao seu
modo. Esta explicação de inicio foi aceita, mas a coincidência de palavras não
pode ser justificada por uma tradição apenas oral. Há necessidade de um
instrumento literário.
Daí surgiu a teoria das duas fontes, hoje aceita pela
maioria, porque explica tudo. Como dissemos, nos evangelhos sinóticos podemos
distinguir três partes: 1. Aquelas que são narradas pelos três; 2. aquelas que
são narradas apenas por dois; e 3. Aquelas narradas apenas por um.
Quanto à primeira parte, a crítica mostrou que o primeiro
evangelho a ser escrito foi Marcos, por ser mais rústico e incompleto, em
contraposição aos outros, mais elaborados e mais evoluídos. Foi escrito em
Roma, porque ele não explica certos termos latinos, enquanto os outros
explicam. A data aproximada é entre 60 e 70, mas seguramente antes de 70, pois
este foi o ano da destruição de Jerusalém, e eles ainda confundiam este
acontecimento com o fim do mundo. Os outros já não fazem assim. Por tudo isto
se concluiu que Marcos escreveu primeiro, provavelmente baseado na pregação de
Pedro e na tradição oral.
Os outros dois (Mateus e Lucas) copiaram de Marcos,
melhorando o texto e adaptando conforme e ocasião, usando também uma tradição
oral. Assim se explica o fato de coincidência entre os três evangelistas.
A segunda parte, a princípio foi explicada como se um
tivesse copiado do outro, mas provavelmente eles não se conheceram. Portanto,
ambos devem ter se inspirado em outra fonte, talvez já em grego (não se sabe se
oral ou escrita) que servia de base para um ensino primitivo. Talvez até aquele
texto a que se refere Eusébio, pois é anterior aos Evangelhos escritos. É a
chamada FONTE Q (de Quelle, em alemão, fonte). Esta fonte só foi conhecida de
Mateus e Lucas.
A terceira parte tem explicação mais fácil: cada escritor
fez uso de certas fontes que havia em suas regiões, e que os outros não
conheceram. Como eles moravam longe entre si, então um não conheceu as fontes
particulares do outro. Assim em Mateus, por exemplo, discriminam-se: as partes
copiadas de Marcos são principalmente os fatos extraordinários (milagres...);
as copiadas de Q são acima de tudo os discursos (parábolas...); as copiadas das
fontes particulares são outros pormenores.
Convêm notar que nem Marcos nem a fonte Q eram crônicas, ou
seja, relatos dos acontecimentos, mas escritos elaborados pela Igreja primitiva
para uso no ensino. Cristo morreu em torno do ano 30. O evangelho de Marcos só
foi escrito por volta de 65. Neste meio termo, a tradição foi transmitida
oralmente, ou por meio de pequenos folhetos, uns contendo as parábolas, outros
contando os milagres, outros contando os fatos da infância; outro contando a
paixão... Em outras palavras, havia grande proliferação de escritos esparsos
nas várias Igrejas e nas várias regiões.
O prólogo de Lucas faz-nos supor 3 estágios na formação do
Evangelho: a) há as testemunhas oculares, que contaram o que presenciaram; b )
há os que tentaram compilar isso, as pequenas fontes; como diz Lucas muitos
empreenderam... ; c) a obra do evangelista; como diz Lucas: Escrevi a exposição
ordenada dos fatos.
Quando dizemos que houve cópias uns dos outros, devemos
entender que o Evangelista não copiou simplesmente o outro, mas compôs baseado
em suas pesquisas, e acrescentou algo de si. Além disso, o Evangelho não é um
documento histórico narrativo da vida de Jesus, mas reproduz a sua mensagem,
muito embora não usa sua mensagem total, pois tudo que Jesus ensinou não está
nos Evangelhos. Eles escreveram apenas o que interessava àquela Igreja,
naquelas circunstâncias. Assim, por exemplo, no traslado do fato do centurião,
retirado da fonte Q, Mateus escreveu que o centurião veio em pessoa falar; e
Lucas diz que ele mandou os anciãos falarem. E Mateus colocou neste contexto o
final que Lucas só colocou no Cap.13 muitos virão do oriente e do ocidente
sentar-se com Isaac e Jacó....
Noutra passagem, Mateus fala em paralisia, porque ele queria
salientar apenas que os judeus não reconheceram o reino de Deus, o que os
chocava. Mas Lucas diz doente quase à morte, porque o que impressionava aos
gregos era o Cristo, Senhor da vida. Só para mostrar como o contexto é
importante, em João no episódio do centurião, este convida Jesus para ir à casa
dele. João não tinha interesse em mostrar nenhuma faceta da personalidade de
Jesus, mas apenas e como um sinal: o homem chegou desconfiando de Jesus, mas no
fim tanto ele como sua família, todos creram.
Mateus 22,1-14 e Lucas 14,16-24 narram a mesma parábola. Mas
Mateus junta duas parábolas numa só: a dos convidados ao banquete com a da
veste nupcial. Mateus, que seria mais longo, não especificou as funções de cada
um. Além disso, acrescenta o episódio de incendiar a cidade e maltratar os
servos. Lucas omite estes detalhes, mas especifica as ocupações dos convidados.
Omite, porém a veste nupcial. Mateus, escrevendo para judeus, tinha interesse
em acentuar a rejeição deles e o convite aos pagãos; Lucas, escrevendo para
gregos, não tinha esta meta.
Os textos de Mt 19:1-9; Mc 10:1-10; Lc 16:18 falam no
divórcio. Era discutida no tempo de Jesus uma prescrição que estava contida na
lei de Moisés. Os textos em grego divergem por uma palavra, dando margem a duas
interpretações. Um destes textos gregos apresenta a expressão mê epí pornéias =
não em caso de fornicação, e no outro diz: paréctos logoû pornéias = a não ser
no caso de fornicação. É uma questão difícil de resolver, pela dificuldade da
tradução de porneia. Esta palavra vem do grego pornê” (meretriz). Porneia deve
significar qualquer atividade sexual fora do matrimônio. Além da dificuldade
textual há a dificuldade jurídica. Não se pode dizer que Jesus tenha
aconselhado isto, porque assim estaria anulando todo o NT nem se poderia
entender o seu raciocínio na ocasião.
O problema ainda permanece. Uma das soluções que teve
aceitação em certo tempo foi a de um autor francês, interpretando assim: esta
palavra grega porneia teria sido empregada para traduzir a palavra hebraica
zenût, que quer dizer concubinato, um costume muito difundido entre os judeus.
O concubinato consistia num contrato bilateral entre um casal interessado que
vivia como casados, sem efeito legal. Então o texto se referiria a eles: o
divórcio é proibido, a não ser em caso de concubinato, pois não sendo casados
legalmente, não haveria óbice. Os outros autores (fora Mateus) não colocaram
esta ressalva, porque nas situações deles não havia o costume. Esta solução não
foi aceita porque seria um pleonasmo da parte de Jesus repetir um conselho ou
uma ordem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário