Eu disse no capítulo anterior que a castidade era a menos
popular das virtudes cristãs. Mas não estou tão certo disso. Acredito que haja
uma virtude ainda menos popular, expressa na regra cristã Amarás a teu próximo
como a ti mesmo. Porque, na moral cristã, amar o próximo inclui amar o inimigo,
o que nos impinge o odioso dever de perdoar nossos inimigos.
Todos dizem que o perdão é um ideal belíssimo até terem algo
a perdoar, como nós tivemos durante a guerra. Nesse momento, a simples menção
do assunto é recebida com bramidos de ódio. Não é que as pessoas julguem essa
virtude muito elevada e difícil de praticar: julgam-na, isto sim, odiosa e
desprezível. Essa conversa nos dá nojo, dizem. E metade de vocês já deve estar
querendo me perguntar: E, se você fosse judeu ou polonês, perdoaria a Gestapo ?
Normalmente, a afeição natural deve ser encorajada. No
entanto, seria um erro pensar que o caminho para se obter a caridade consiste
em sentar-se e tentar fabricar bons sentimentos. Certas pessoas são frias por
temperamento; isso pode ser um azar para elas, mas é tão pecaminoso quanto ter
problemas de digestão — ou seja, não é pecado. Isso não lhes tira a
oportunidade nem as exime do dever de aprender a caridade. A regra comum a
todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo perguntando-se se você ama o
próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prática,
descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse
amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa. Quando faz mal a alguém de
quem não gosta, passa a desgostar ainda mais dessa pessoa. Já se, por outro
lado, lhe fizer um bem, verá que a aversão diminui. Existe, porém, uma exceção
a essa regra. Se você lhe fizer um bem, não para agradar a Deus e obedecer à
lei da caridade, mas para lhe mostrar como você é uma pessoa capaz de perdoar,
para lhe deixar em dívida e para sentar-se à espera de manifestações de
gratidão, provavelmente vai decepcionar-se. (As pessoas não são bobas: elas têm
um olho clínico para todas as formas de exibicionismo ou condescendência
paternalista.) Sempre, porém, que fizermos o bem ao próximo por ser ele um eu
igual a nós, criado por Deus, que deseja sua própria felicidade como nós
desejamos a nossa, teremos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, a
desgostar dele um pouco menos.
Consequentemente, apesar de a caridade cristã parecer fria
para as pessoas cujas cabeças estão cheias de sentimentalismo, e apesar de ser
bem diferente da afeição, ela nos conduz a este sentimento. A diferença entre
um cristão e um ímpio não é que este tem afeições e gostos pessoais ao passo
que o cristão só tem a caridade. O ímpio trata bem certas pessoas porque gosta
delas; o cristão, tentando tratar a todos com bondade, tende a gostar de um
número cada vez maior de pessoas no decorrer do tempo — inclusive de pessoas de
quem ele não poderia imaginar que um dia fosse gostar.
A mesma lei espiritual funciona de maneira terrível no
sentido oposto. Pode ser que os alemães, de início, maltratassem os judeus
porque os odiassem; depois, passaram a odiá-los ainda mais por tê-los
maltratado. Quanto mais cruel você é, mais ódio você terá; quanto mais ódio
tiver, mais cruel será - e assim para sempre, num círculo vicioso perpétuo.
O Bem e o Mal aumentam ambos à velocidade dos juros
compostos. E por isso que as pequenas decisões que eu ou você tomamos todos os
dias têm tanta importância. O menor gesto de bondade feito hoje garante a
conquista de um ponto estratégico a partir do qual, em alguns meses, você
poderá alcançar vitórias nunca sonhadas. Já uma concessão aparentemente trivial
à luxúria ou à ira significa a perda de uma colina, de uma linha férrea ou de
uma cabeça de ponte a partir das quais o inimigo poderá lançar um ataque que,
de outro modo, seria inviável. Alguns escritores usam a palavra caridade para
designar não somente o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de
Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas costumam preocupar-se
mais com este último. Ouviram dizer que devem amar a Deus, mas elas não
encontram esse amor dentro de si. O que devem fazer ? A resposta é a mesma de
antes. Aja como se você amasse. Não fique sentado tentando fabricar esse
sentimento. Pergunte a si mesmo: Se estivesse certo de que amasse a Deus, o que
eu faria ? Quando encontrar a resposta, No geral, o amor de Deus por nós é um
tema muito mais seguro que o nosso amor por ele. Ninguém consegue ter sempre o
sentimento de devoção: e, mesmo que conseguisse, não são os sentimentos que
mais importam a Deus. O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os
homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade,
estamos cumprindo o mandamento Amarás o Senhor teu Deus. Ele nos dará o
sentimento do amor se assim desejar. Não podemos criá-lo por nós mesmos nem
podemos exigi-lo como se fosse um direito nosso. Porém, a grande coisa a se
lembrar é que, apesar de nossos sentimentos irem e virem, o amor dele por nós
não se altera. Não se desgasta por causa dos nossos pecados nem por nossa
indiferença. Logo, é inflexível em sua determinação de que seremos curados
desses pecados custe o que custar, seja para nós, seja para ele.
A ESPERANÇA
A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer
que (ao contrário do que o homem moderno pensa) o anseio contínuo pelo mundo
eterno não é uma forma de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coisas que
se espera do cristão. Não significa que se deve deixar o mundo presente tal
como está. Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais
trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo.
Os apóstolos, que desencadearam a conversão do Império Romano, os grandes
homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que aboliram o
tráfico de escravos - todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente
porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos
deixaram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui.
Se você aspirar ao Céu, ganhará a Terra de lambuja; se aspirar à Terra, perderá
ambos. Essa regra parece esquisita, mas pode-se observar algo semelhante em
outros assuntos. A saúde é uma grande bênção, mas, no momento em que fazemos
dela um dos nossos principais objetivos, nos tornamos hipocondríacos e passamos
a imaginar que há algo de errado conosco. Só nos mantemos saudáveis na medida
em que queremos outras coisas além da saúde: comida, jogos, trabalho, lazer, a
vida ao ar livre. Do mesmo modo, nunca conseguiremos salvar a civilização
enquanto for esse o nosso principal objetivo. Temos de aprender a querer outra
coisa ainda mais do que queremos isso.
A maioria de nós acha muito difícil desejar o Paraíso - a
não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já
morreram. Uma das razões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa formação:
toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é
que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o
reconhecemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a examinar
profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo
que não pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo
tipo que nos prometem isso que queremos, mas que nunca cumprem o prometido.
Aquele anseio que nasce em nós quando nos apaixonamos pela primeira vez, quando
pela primeira vez pensamos numa terra estrangeira, quando começamos a estudar um
assunto que nos entusiasma, é um anseio que nenhum casamento, viagem ou estudo
pode realmente satisfazer. Não estou falando aqui do que costumam chamar de
casamentos infelizes, férias frustradas e carreiras fracassadas, mas sim das
melhores possibilidades em cada um desses campos. Havia algo que vislumbramos
no primeiro instante de encantamento e que simplesmente desaparece quando o
anseio se torna realidade. Acho que todos sabem do que estou falando. A esposa
pode ser uma boa esposa, os hotéis e a paisagem podem ter sido excelentes, e
talvez a Química seja uma bela profissão: algo, porém, nos escapou. Ora,
existem duas maneiras erradas, e uma certa, de lidar com esse fato.
(1) A Via do Tolo — Ele põe a culpa nas próprias coisas.
Passa a vida toda a conjecturar que, se arranjasse outra mulher, fizesse uma
viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa
coisa misteriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ricos entediados e
descontentes do nosso mundo são desse tipo. Eles passam a vida toda pulando de
uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para
continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último
será, enfim, a coisa certa, e sempre decepcionados.
(2) A Via do Homem Sensato Desiludido - Logo ele conclui que
tudo não passava de conversa fiada. E bem verdade, diz ele, que, quando é
jovem, a pessoa se sente assim. Quando chega à minha idade, porém, você desiste
de buscar o fim do arco-íris. Então, ele se acomoda, aprende a não esperar
muito da vida e reprime a parte de si mesmo que, nas suas palavras, costumava
uivar para a lua. Essa é, sem dúvida, uma via bem melhor que a primeira; torna
o homem mais feliz e não faz dele um problema para a sociedade. Tende a
torná-lo um chato (sempre pronto a se achar superior diante dos que julga
adolescentes), mas, de maneira geral, faz com que ele leve uma vida sem grandes
sobressaltos. Seria a melhor opção se o homem não tivesse uma vida eterna. Mas
suponha que a felicidade infinita realmente exista e esteja logo ali, à nossa
espera. Suponha que realmente seja possível alcançar o fim do arco-íris — nesse
caso, seria uma pena descobrir tarde demais (imediatamente após a morte) que,
por causa do nosso suposto bom senso, sufocamos em nós mesmos a faculdade de
gozar dessa felicidade.
(3) A Via Cristã - Dizem os cristãos: As criaturas não
nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem,
existe o alimento. Um patinho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o
desejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um desejo que nenhuma
experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui
criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satisfaz esse
desejo, isso não prova que o universo é uma tremenda enganação. Provavelmente,
esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para despertá-lo
e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um
lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por
elas; por outro, para nunca tomá-las pelo algo a mais do qual são apenas a
cópia, o eco ou a miragem, Tenho de manter viva em mim a chama do desejo pela
minha verdadeira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais
permitir que ela seja arrasada ou caia no esquecimento. Tenho de fazer com que
o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras
pessoas a buscá-la também.
Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam
ridicularizar a esperança cristã do Paraíso dizendo que não querem passar a
eternidade tocando harpa. A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se
elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar
sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.)
são, obviamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os
instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a
música é o objeto conhecido nesta vida que mais fortemente sugere o êxtase e a
infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que
estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder
e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a ideia da eternidade do Paraíso
(o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem
esses símbolos literalmente poderiam também pensar que, quando Cristo nos
exortou a ser como as pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.
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