1. Natureza da justificação
Absolvição
divina.
A
palavra "justificar" é termo judicial que significa absolver,
declarar justo, ou pronunciar sentença de aceitação. A ilustração procede das
relações legais. O réu está perante Deus, o justo Juiz; mas, ao invés de
receber sentença condenatória, ele recebe a sentença de absolvição.
O
substantivo "justificação" ou "justiça", significa o estado
de aceitação para o qual se entra pela fé. Essa aceitação é dom gratuito da
parte de Deus, posto à nossa disposição pela fé em Cristo. (Rm 1:17; 3:21,22) É
o estado de aceitação no qual o crente permanece (Rm 5:2).
Apesar
de seu passado pecaminoso e de imperfeições no presente, o crente goza de
completa e segura posição para com Deus. "Justificado" é o veredito
divino e ninguém o poderá contradizer. (Rm 8:34)
Essa
doutrina assim se define: "Justificação é um ato da livre graça de Deus
pelo qual ele perdoa todos os nossos pecados e nos aceita como justos aos seus
olhos somente por nos ser imputada a justiça de Cristo, que se recebe pela
fé."
Justificação
é primeiramente uma mudança de posição da parte do pecador, o qual antes era um
condenado; agora, porém, goza de absolvição. Antes estava sob a condenação, mas
agora participa da divina aprovação.
Justificação
inclui mais do que perdão dos pecados e remoção da condenação, pois no ato da
justificação Deus coloca o ofensor na posição de justo.
O
presidente da República pode perdoar o criminoso, mas não pode reintegrá-lo na
posição daquele que nunca desrespeitou as leis. Mas a Deus é possível efetuar
ambas as coisas! Ele apaga o passado, os pecados e ofensas, e, em seguida,
trata o ofensor como se nunca tivesse cometido um pecado sequer!
O
criminoso perdoado não é considerado ou descrito como bom ou justo; mas Deus,
ao perdoar o pecador, o declara justificado, isto é, justo aos olhos divinos.
Juiz algum poderia justificar o criminoso, isto é, declará-lo homem justo e
bom. Se Deus estivesse sujeito às mesmas limitações e justificasse somente
gente boa, então não haveria evangelho nenhum a ser anunciado aos pecadores.
Paulo
nos assegura que Deus justifica o ímpio. "O milagre do Evangelho é que
Deus se aproxima dos ímpios, com uma misericórdia absolutamente justa e os
capacita pela fé, a despeito do que são, a entrarem em nova relação com ele,
relação pela qual é possível que se tomem bons. O segredo do Cristianismo do
Novo Testamento, e de todos os avivamentos e reformas da igreja, é justamente
este maravilhoso paradoxo: "Deus justifica o ímpio!"
Assim
vemos que justificação é primeiramente subtração — o cancelamento dos pecados;
segundo, adição — imputação de justiça.
2.
Necessidade da Justificação
A
condenação do homem.
"Como
se justificará o homem para com Deus?" Perguntou Jó (9:1).
"Que
é necessário que eu faça para me salvar?" Interrogou o carcereiro de
Filipos.
Ambos
expressaram a maior de todas as perguntas:
Como
pode o homem acertar sua vida perante Deus e ter certeza da aprovação divina?
A
resposta a essa interrogação encontra-se no Novo Testamento, especialmente na
epístola aos Romanos, na qual se apresenta, em forma sistemática e detalhada, o
plano da salvação. O tema do livro encontra-se no capítulo 1:16,17, o qual se
pode parafrasear da seguinte maneira:
O
evangelho é o poder de Deus para a salvação dos homens, pois o evangelho revela
aos homens como se pode mudar de posição e de condição, de maneira que eles
sejam justos perante Deus.
Uma
das frases proeminentes da mesma epístola é: "A justiça de Deus." O
inspirado apóstolo descreve a qualidade de justiça que Deus aceita, de forma
que o homem que a possui tenha aceitação como justo perante ele. Essa justiça
resulta da fé em Cristo. Paulo demonstra que todos os homens necessitam dessa
justiça de Deus, porque toda a raça pecou. Os gentios estão sob condenação. Os
passos de sua degradação foram claros:
Outrora
conheceram a Deus (1:19,20); Falhando em o servirem e adorarem, seu coração
insensato se obscureceu (1:21,22); A cegueira espiritual os conduziu à
idolatria (verso 23) e a idolatria os conduziu à corrupção moral (vers. 24-31).
São indesculpáveis porque tinham a revelação de Deus na natureza, e a
consciência que aprova ou desaprova seus atos. (Rm 1:19,20; 2:14,15)
O
judeu também está sob condenação. É verdade que ele pertence à nação escolhida,
e conhece a lei de Moisés de há muitos séculos, mas transgrediu essa lei em
pensamentos, atos e palavras (cap. 2). Paulo, assim, estrondosamente, encerra
toda a raça humana sob a condenação:
"Ora,
nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para
que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus.
Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque
pela lei vem o conhecimento do pecado" (Rm 3:19,20).
Qual
será essa "justiça" de que tanto necessita o homem?
A
própria palavra significa "retidão", ou estado de reto, ou justo. A
palavra às vezes descreve o caráter de Deus, como sendo isento de toda imperfeição
ou injustiça. Quando aplicada ao homem, significa o estado de retidão diante de
Deus. Retidão significa "reto", aquilo que se conforma a um padrão ou
norma. Por conseguinte, é o homem que se conforma à lei divina. Mas que
acontecerá se esse homem descobrir que, em vez de ser "reto", ele é
perverso (literalmente "torto") sem poder se endireitar? É então que
ele precisa da justificação — que é obra exclusiva de Deus.
Paulo
declarou que pelas obras da lei ninguém será justificado. Essa declaração não é
uma crítica contra a lei, a qual é santa e perfeita. Significa simplesmente que
a lei não foi dada com esse propósito de fazer justo o povo, e, sim, de suprir
a necessidade duma norma de justiça.
A
lei pode ser comparada a uma fita métrica que pode medir o comprimento do pano,
sem, contudo, aumentar o comprimento. Podemos compará-la à balança que
determina o nosso peso, sem, contudo, aumentar esse peso. "Pela lei vem o
conhecimento do pecado."
"Mas
agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus" (Rm 3:21). Notem a
palavra "agora". Alguém disse que Paulo dividiu todo o tempo em
"agora" e "depois". Em outras palavras, a vinda de Cristo
operou uma grande mudança nas transações de Deus com os homens. Introduziu uma
nova dispensação. Durante séculos os homens pecavam e aprendiam a
impossibilidade de aniquilarem ou vencerem seus pecados. Mas agora Deus, clara
e abertamente, revelou-lhes um novo caminho.
Muitos
israelitas julgavam que devia haver um meio de serem justificados sem ser pela
guarda da lei; por duas razões:
1)
perceberam um grande abismo entre as exigências de Deus para com Israel e seu
verdadeiro estado espiritual. Israel era injusto, e a salvação não podia
proceder dos próprios méritos ou esforços. A salvação teria que proceder de
Deus, por sua intervenção.
2)
Muitos israelitas reconheceram por experiência própria sua incapacidade para
guardar perfeitamente a lei. Chegaram à conclusão de que devia haver uma
justiça alcançável independentemente de suas próprias obras e esforços. Em
outras palavras, -anelavam por redenção e graça. E Deus lhes assegurou que tal
justiça lhes seria revelada. Paulo (Rm 3:21) fala da justiça de Deus sem a lei,
"tendo o testemunho da lei (Gn 3:15; 12:3; Gl 3:6-8) e dos profetas (Jr
23:6; 31:31-34)". Essa justiça incluía tanto o perdão dos pecados como a
justiça íntima do coração.
Na
verdade, Paulo afirma que a justificação pela fé foi o plano original de Deus
para a salvação dos homens; a lei foi acrescentada para disciplinar os
israelitas e fazê-los sentir a necessidade de redenção. (Gl 3:19-26) Mas a lei
em si não possuía poder para salvar, como o termômetro não tem poder para
baixar a febre que ele registra. Seria o próprio Senhor, o Salvador do seu
povo; e sua graça seria a sua única esperança.
Infelizmente,
os judeus exaltaram a lei, imaginando que ela fosse um agente justificador, e
elaboraram um plano de salvação baseado no mérito pela guarda dos seus
preceitos e das tradições que lhes foram acrescentadas.
"Porquanto,
não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria
justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus" (Rm 10:3).
Não
conheceram o propósito da lei. Confiaram nela como meio de salvação espiritual,
ignorando a pecabilidade dos seus próprios corações, e imaginavam que seriam
salvos pela guarda da letra da lei. Por essa razão, quando Cristo veio,
oferecendo-lhes a salvação dos seus pecados, pensavam que não precisavam dum
Messias como ele. (vide Jo 8:32-34)
O
pensamento dos judeus era o de estabelecer rígidos requisitos pelos quais
conseguiriam a vida eterna. "Que faremos para executarmos as obras de
Deus?" perguntaram. E não se prontificaram a obedecer à indicação de
Jesus: "A obra de Deus é esta: Que creiais naquele que ele enviou"
(Jo 6:28,29).
Tão
ocupados estavam em estabelecer seu próprio sistema de justiça, que perderam,
por completo, a oportunidade de serem participantes da justificação divinamente
provida para os homens pecadores.
Na
viagem, um trem representa o meio de conseguir um determinado alvo. Ninguém
pensa em fazer do trem sua morada; antes, preocupa-se tão somente em chegar ao
destino. Ao chegar a esse destino, deixa-se o trem. A lei foi dada a Israel com
o propósito de conduzi-lo a um destino, e esse destino é a fé na graça
salvadora de Deus. Mas, ao aparecer o Redentor, os judeus satisfeitos consigo
mesmos, fizeram o papel do viajante que, chegando ao destino, se recusa a
deixar o trem, embora o condutor lhe diga: "Estamos no fim da
viagem"! Os judeus se recusaram a deixar as poltronas do "trem do
Antigo Pacto", muito embora o Novo Testamento lhes assegurasse: "O
fim da lei é Cristo", e que se cumpriu o Antigo Testamento. (Rm. 10:4)
3.
A fonte da justificação: a graça.
Graça
significa, primeiramente, favor, ou a disposição bondosa da parte de Deus.
Alguém a definiu como a "bondade genuína e favor não recompensados",
ou "favor não merecido". Dessa forma a graça nunca incorre em dívida.
O que Deus concede, concede-o como favor; nunca podemos recompensá-lo ou
pagar-lhe. A salvação é sempre apresentada como dom, um favor não merecido,
impossível de ser recompensado; é um benefício legítimo de Deus. (Rm 6:23) O
serviço cristão portanto, não é pagamento pela graça de Deus; serviço cristão é
um meio que o crente aproveita para expressar sua devoção e amor a Deus.
"Nós o amamos porque ele primeiramente nos amou."
A
graça é transação de Deus com o homem, absolutamente independente da questão de
merecer ou não merecer. "Graça não é tratar a pessoa como merece, nem
tratá-la melhor do que merece", escreveu L. S. Chafer. "E tratá-la
graciosamente sem a mínima referência aos seus méritos. Graça é amor infinito
expressando-se em bondade infinita."
Devemos
evitar certo mal-entendido. Graça não significa que Deus é de coração tão
magnânimo que abranda a penalidade ou desiste dum justo juízo.
Sendo
Deus o Soberano perfeito do universo, ele não pode tratar indulgentemente o
assunto do pecado pois isso depreciaria sua perfeita santidade e justiça. A
graça de Deus aos pecadores revela-se no fato de que ele mesmo pela expiação de
Cristo, pagou toda a pena do pecado. Por conseguinte, ele pode justamente
perdoar o pecado sem levar em conta os merecimentos ou não merecimentos. Os
pecadores são perdoados, não porque Deus seja benigno para desculpar os pecados
deles, mas porque existe redenção mediante o sangue de Cristo. (Rm 3:24; Ef
1:6) Os pregadores modernistas erram nesse ponto; pensam que Deus por sua
benignidade perdoa os pecados; entretanto, seu perdão baseia-se na mais
rigorosa justiça. Ao perdoar o pecado, "Ele é fiel e justo" (1 Jo
1:9).
A
graça de Deus revela-se no fato de haver ele provido uma expiação pela qual
pode ser justo e justificador e, ao mesmo tempo, manter sua santa e imutável
lei. A graça manifesta-se independente das obras ou atividades dos homens.
Quando a pessoa está sob a lei, não pode estar sob a graça; e quando está sob a
graça, não pode estar sob a lei. Está "sob a lei" quando tenta
assegurar a sua salvação ou santificação como recompensa, por fazer boas obras
ou observar certas cerimônias. Essa pessoa está "sob a graça" quando
assegura para si a salvação por confiar na obra que Deus fez por ela, e não na
obra que ela faz para Deus. As duas esferas são mutuamente exclusivas. (Gl
5:4)
A
lei diz: "paga tudo"; mas a graça diz: "Tudo está pago." A
lei representa uma obra a fazer; a graça é uma obra consumada. A lei restringe
as ações; a graça transforma a natureza. A lei condena; a graça justifica. Sob
a lei a pessoa é servo assalariado; sob a graça é filho em gozo de herança
ilimitada.
Enraizada
no coração humano está a ideia de que o homem deve algo para tornar-se
merecedor da salvação. Na igreja primitiva certos instrutores judaico-cristãos
insistiam em que os convertidos fossem salvos pela fé e a observância da Lei de
Moisés. Entre os pagãos, e em alguns setores da igreja cristã, esse erro tem
tomado a forma de auto-castigo, observância de ritos, peregrinações, e esmolas.
A ideia substancial de todos esses esforços é a seguinte: Deus não é bondoso; o
homem não é justo; por conseguinte, o homem precisa fazer-se justo a fim de
tornar Deus benigno. Esse foi o erro de Lutero, quando, mediante
auto-mortificações, envidava esforços para efetuar a sua própria salvação.
"Oh quando será que você se tornará piedoso a ponto de ter um Deus
benigno?" exclamou certa vez, referindo-se a si próprio. Finalmente Lutero
descobriu a grande verdade básica do evangelho: Deus é bondoso; portanto deseja
fazer justo o homem. A graça do amoroso Pai, revelada na morte expiatória de
Cristo é um dos elementos que distinguem o Cristianismo das demais religiões.
Salvação
é a justiça de Deus imputada ao pecador; não é a justiça imperfeita do homem.
Salvação
é divina reconciliação; não é regulamento humano.
Salvação
é o cancelamento de todos os pecados; não é eliminar alguns pecados.
Salvação
é ser libertado da lei e estar morto para a lei; não é ter prazer na lei ou
obedecer á lei.
Salvação
é regeneração divina; não é reforma humana.
Salvação
é ser aceitável a Deus; não é tornar-se excepcionalmente bom.
Salvação
é perfeição em Cristo; não é competência de caráter.
A
salvação, sempre e somente, procede de Deus; nunca procede do homem. — Lewis
Sperry Chofer.
Usa-se,
às vezes, a palavra "graça", no sentido íntimo, para indicar a
operação da influência divina (Ef 4:7) e seus efeitos (At 4:33; 11:23; Tg 4:6;
2 Co 12:9). As operações desse aspecto da graça têm sido classificadas da
seguinte maneira:
Graça
proveniente (literalmente, "que vem antes") é a influência divina que
precede a conversão da pessoa, influências que produzem o desejo de voltar para
Deus. É o efeito do favor divino em atrair os homens (Jo 6:44) e convencer os
desobedientes. (At 7:51) Essa graça, às vezes, é denominada eficiente,
tornando-se eficaz em produzir a conversão, quando não encontra resistência.
(Jo 5:40; At 7:51; 13:46)
A
graça efetiva capacita os homens a viverem justamente, a resistirem à tentação,
e a cumprirem o seu dever. Por isso pedimos graça ao Senhor para cumprir uma
determinada tarefa. A graça habitual é o efeito da morada do Espírito Santo que
resulta em uma vida plena do fruto do Espírito (Gl 5:22,23).
4. Fundamento da justificação - A
justiça de Cristo.
Como
pode Deus tratar o pecador como pessoa justa?
Resposta:
Deus lhe provê a justiça.
Mas
será que isso é apenas conceder o título de "bom" e "justo"
a quem não o merece?
Resposta:
O Senhor Jesus Cristo ganhou o título a favor do pecador, o qual é declarado
justo "mediante a redenção que há em Cristo Jesus". Redenção
significa completa libertação por preço pago.
Cristo
ganhou essa justiça por nós, por sua morte expiatória, como está escrito:
"Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue."
Propiciação é aquilo que assegura o favor de Deus para com os que não o
merecem. Cristo morreu por nós para nos salvar da justa ira de Deus e nos
assegurar o seu favor. A morte e a ressurreição de Cristo representam a
provisão externa para a salvação do homem, referindo-se o termo justificação à
maneira pela qual os benefícios salvadores da morte de Cristo são postos à
disposição do pecador. Fé é o meio pelo qual o pecador lança mão desses
benefícios.
Consideremos
a necessidade de justiça. Como o corpo necessita de roupa, assim a alma
necessita de caráter. Assim como é necessário apresentar-se em público
decentemente vestido, assim é necessário que o homem se vista da roupa dum
caráter perfeitamente justo para apresentar-se diante de Deus. (Vide Ap 19:8;
3:4; 7:13,14) As vestes do pecado estão sujas e rasgadas (Zc. 3:1-4); se o
pecador se vestisse de sua própria bondade e seus próprios méritos, alegando
serem boas as suas obras, elas seriam consideradas como "trapos de
imundícia". (Is 64:6) A única esperança do homem é adquirir a justiça que
Deus aceita — a "justiça de Deus". Visto que o homem por natureza
está destituído dessa justiça, terá que ser provida para ele essa justiça; terá
que ser uma justiça que lhe seja imputada, não merecida.
Essa
justiça foi comprada pela morte expiatória de Cristo. (Is 53:5,11; 2 Co 5:21;
Rm 4:6; 5:18,19) Sua morte foi um ato perfeito de justiça, porque satisfez a
lei de Deus. Foi também um ato perfeito de obediência. Tudo isso foi feito por
nós e posto a nosso crédito. "Deus nos aceita como justos aos seus olhos
somente por nos ter sido imputada a justiça de Cristo", afirma determinada
declaração doutrinária.
O
ato pelo qual Deus credita essa justiça à nossa conta chama-se imputação.
Imputação é levar à conta de alguém as conseqüências do ato de outrem. As
conseqüências do pecado do homem foram levadas à conta de Cristo, e as
conseqüências da obediência de Cristo foram levadas à conta do crente. Ele
vestiu-se das vestes do pecado para que nós pudéssemos nos vestir do seu "manto
de justiça". "Cristo... para nós foi feito por Deus... justiça"
(1 Co 1:30). Ele torna-se "O Senhor Justiça Nossa" (Jr 23:6).
Cristo
expiou nossa culpa, satisfez a lei, tanto por obediência como por sofrimento, e
tornou-se nosso substituto, de maneira que, estando unidos com ele pela fé, sua
morte toma-se nossa morte, e sua obediência toma-se nossa obediência. Deus
então nos aceita, não por qualquer bondade própria que nós tenhamos, nem pelas
coisas imperfeitas que são as nossas "obras" (Rm 3:28; Gl 2:16), nem
por nossos méritos, mas porque nos foi creditada a perfeita e toda-suficiente
justiça de Cristo. Por causa de Cristo, Deus trata o homem culpado, quando este
se arrepende e crê, como se fosse justo. Os méritos de Cristo são creditados a
ele.
Também
surgem as seguintes perguntas na mente da pessoa que investiga:
Sim,
a justificação que salva é algo externo e concernente à posição legal do
pecador; mas não haverá mudança alguma na condição moral?
Afeta
a sua situação, mas não afetará sua conduta?
A
justiça é imputada somente e não concedida de modo prático?
Na
justificação Cristo somente será por nós, ou agirá também em nós?
Em
outras palavras, parece que a imputação da justiça desonraria a lei se não
incluísse a certeza de justiça futura
A
resposta é que a fé que justifica é o ato inicial da vida cristã e esse ato
inicial, quando a fé for viva, é seguido por uma transformação interna
conhecida como regeneração. A fé une o crente com o Cristo vivo; essa união com
o Autor da vida resulta em transformação do coração.
"Se
alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que
tudo se fez novo" (2 Co 5:17).
A
justiça é imputada no ato da justificação e é comunicada na regeneração. O
Cristo que é por nós torna-se o Cristo em nós.
A
fé pela qual a pessoa é realmente justificada, necessariamente tem que ser uma
fé viva. Uma fé viva produzirá uma vida reta; será uma fé que "opera pelo
amor" (Gl 5:6). Outrossim, vestindo a justiça de Cristo, o crente é
exortado a viver uma vida em conformidade com o caráter de Cristo.
"Porque
o linho fino são as justiças dos santos" (literalmente os atos de justiça)
(Ap 19:8).
A
verdadeira salvação requer uma vida de santidade prática.
Que
julgamento faríamos da pessoa que sempre se vestisse de roupa imaculada mas
nunca lavasse o corpo?
Incoerente,
diríamos! Mas não menos incoerente é a pessoa que alega estar vestida da
justiça de Cristo, e, ao mesmo tempo, vive de modo indigno do evangelho.
Aqueles que se vestem da justiça de Cristo terão cuidado de purificar-se do mesmo
modo como ele é puro. (1 Jo 3:3)
5.
Os meios da justificação - A fé.
Visto
que a lei não pode justificá-lo, a única esperança do homem é receber
"justiça sem lei" (isto, entretanto, não significa injustiça ilegal,
nem tampouco religião que permita o pecado; significa sim, uma mudança de
posição e condição). Essa é a "justiça de Deus", isto é, a justiça
que Deus concede, sendo também um dom, pois o homem é incapaz de operar a
justiça. (Ef 2:8-10)
Mas
um dom tem que ser aceito. Como, então, será aceito o dom da justiça? Ou,
usando a linguagem teológica: qual é o instrumento que se apropria da justiça
de Cristo?
A
resposta é: "pela fé em Jesus Cristo." A fé é a mão, por assim dizer,
que recebe o que Deus oferece. Que essa fé é a causa instrumental da
justificação prova-se pelas seguintes referências: Rm 3:22; 4: 11; 9:30; Hb
11:7; Fl 3:9.
Os
méritos de Cristo são comunicados e seu interesse salvador é assegurado por
certos meios.
Esses
meios necessariamente são estabelecidos por Deus e somente ele os distribui.
Esses
meios são a fé — o princípio único que a graça de Deus usa para restaurar-nos à
sua imagem e ao seu favor.
Nascida,
como é, no pecado, herdeira da miséria, a alma carece duma transformação
radical, tanto por dentro como por fora; tanto diante de Deus como diante de si
própria.
A
transformação diante de Deus denomina-se justificação; a transformação interna
espiritual que se segue, chama-se regeneração pelo Espírito Santo.
Esta
fé é despertada no homem pela influência do Espírito Santo, geralmente em
conexão com a Palavra. A fé lança mão da promessa divina e apropria-se da
salvação. Ela conduz a alma ao descanso em Cristo como Salvador e Sacrifício
pelos pecados; concede paz à consciência e dá esperança consoladora do céu.
Sendo essa fé viva e de natureza espiritual, e cheia de gratidão para com
Cristo, ela é rica em boas obras de toda espécie.
"Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus.
Não vem das obras, para que ninguém se glorie" (Ef 2:8,9).
O
homem nenhuma coisa possuía com que comprar sua justificação. Deus não podia
condescender em aceitar o que o homem oferecia; o homem também não tinha
capacidade para cumprir a exigência divina. Então Deus graciosamente salvou o
homem, sem pagar este coisa alguma —"gratuitamente pela sua graça" (Rm
3:24).
Essa
graça gratuita é recebida pela fé. Não existe mérito nessa fé, como não cabem
elogios ao mendigo que estende a mão para receber uma esmola. Esse método fere
a dignidade do homem, mas perante Deus, o homem decaído não tem mais dignidade;
o homem não tem possibilidades de acumular bondade suficiente para adquirir a
sua salvação.
"Nenhuma
carne será justificada diante dele pelas obras da lei" (Rm 3:20).
A
doutrina da justificação pela graça de Deus, mediante a fé do homem, remove
dois perigos:
Primeiro,
o orgulho de auto-justiça e de auto-esforço.
Segundo,
o medo de que a pessoa seja fraca demais para conseguir a salvação.
Se
a fé em si não é meritória, representando apenas a mão que se estende para
receber a livre graça de Deus, que é então que lhe dá poder, e que garantia
oferece ela à pessoa que recebeu esse dom gratuito, de que viverá uma vida de
justiça?
Importante
e poderosa é a fé porque ela une a alma a Cristo, e é justamente nessa união
que se descobre o motivo e o poder para a vida de justiça.
"Porque
todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo"(Gl
3:27).
"E
os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e
concupiscências" (Gl 5:24).
A
fé não só recebe passivamente mas também usa de modo ativo aquilo que Deus
concede. É assunto próprio do coração (Rm. 10:9,10; vide Mt 15:19; Pv 4:23), e
quem crê com o coração, crê também com suas emoções, afeições e seus desejos,
ao aceitar a oferta divina da salvação.
Pela
fé, Cristo mora no coração (Ef 3:17). A fé opera pelo amor (a "obra da
fé"... 1Ts 1:3), isto é, representa um princípio enérgico, bem como uma
atitude receptiva. A fé, por conseguinte, é poderoso motivo para a obediência e
para todas as boas obras. A fé envolve a vontade e está ligada a todas as boas
escolhas e ações, pois "tudo que não é de fé é pecado" (Rm 14:23).Ela
inclui a escolha e a busca da verdade (2 Ts 2:12) e implica sujeição à justiça
de Deus (Rm 10:3).
O
que se segue representa o ensino bíblico concernente à relação entre fé e
obras.
A
fé se opõe às obras quando por obras entendemos boas obras que a pessoa faz com
o intuito de merecer a salvação. (Gl 3:11) Entretanto, uma fé viva produzirá
obras (Tg 2:26), tal qual uma árvore viva produzirá frutos.
A
fé é justificada e aprovada pelas obras (Tg 2:18), assim como o estado de
saúde das raízes duma boa árvore é indicado pelos frutos.
A
fé se aperfeiçoa pelas obras (Tg 2:22), assim como a flor se completa ao
desabrochar. Em breves palavras, as obras são o resultado da fé, a prova da fé,
e a consumação da fé.
Imagina-se
que haja contradição entre os ensinos de Paulo e de Tiago.
O
primeiro, aparentemente, teria ensinado que a pessoa é justificada pela fé, o
último que ela é justificada pelas obras. (Vide Rm 3:20 e Tg 2:14-16)
Contudo,
uma compreensão do sentido em que eles empregaram os termos, rapidamente fará
desvanecer a suposta dificuldade.
Paulo
está recomendando uma fé viva que confia somente no Senhor; Tiago está
denunciado uma fé morta e formal que representa, apenas, um consentimento
mental.
Paulo
está rejeitando as obras mortas da lei, ou obras sem fé; Tiago está louvando as
obras vivas que demonstram a vitalidade da fé.
A
justificação mencionada por Paulo refere-se ao início da vida cristã; Tiago usa
a palavra com o significado de vida de obediência e santidade como evidência
exterior da salvação.
Paulo
está combatendo o legalismo, ou a confiança nas obras como meio de salvação;
Tiago está combatendo antinomianismo, ou seja, o ensino de que não importa qual
seja a conduta da pessoa, uma vez que creia.
Paulo e Tiago não são soldados lutando entre si; são soldados da mesma linha de combate, cada qual enfrentando inimigos que os atacam de direções opostas.
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