1. Precursores De Interpretação Bíblica
Os saduceus, com o seu repúdio à doutrina da ressurreição e
descrença na existência de seres angelicais, podem ser considerados como
precursores dessa corrente de interpretação das Escrituras. Pouco se sabe sobre
a origem desse partido judaico, mas parece haver adotado uma posição
secular-pragmática de interpretação das Escrituras. (Nota 10) Ao negarem
verdades básicas das Escrituras, os saduceus podem ser considerados, guardadas
as devidas proporções, como os modernistas ou liberais da época. (Nota 11)
2. Humanismo Renascentista
Os humanistas renascentistas, com seu interesse meramente
literário e acadêmico nas Escrituras, e com sua ênfase na moral, também podem
ser incluídos nesta corrente de interpretação bíblica. Alguns se dedicaram ao
estudo das Escrituras, outros chegaram até a editar textos bíblicos na língua
original. Mas o interesse deles era meramente acadêmico, linguístico, literário
e histórico. Estavam interessados nas Escrituras por sua antiguidade e não por
ser a Palavra de Deus.
3. Escola Crítica
A escola mais característica e influente desta corrente de
interpretação bíblica é a escola crítica, com o seu método histórico-crítico.
Uma das razões para o surgimento do método histórico-crítico parece ter sido
‘‘a pretensão de tornar científicos os estudos bíblicos, ou seja, faze-los
compatíveis com o modelo científico e acadêmico da época’’ (Nota 12) E o
resultado desta nova postura para com as Escrituras (crítica, ao invés de
gramatical) foi o liberalismo teológico que tem sido a postura de muitos
teólogos desde o século passado.
Trata-se sem dúvida de uma hermenêutica racionalista. Ao
invés da revelação governar a razão, a razão é que determina a revelação. A
razão e o intelecto passaram a ser determinantes, sendo rejeitado como erro,
fábula ou mito tudo o que não puder ser explicado ou harmonizado com a razão.
Os adeptos desta corrente rejeitam as doutrinas reformadas
das Escrituras, tais como inspiração, autoridade, inerrância, e preservação;
enfatizam a moralidade e descartam o sobrenatural. Sob forte influência do
evolucionismo de Darwin e da dialética de Hegel, as Escrituras deixaram de ser
vistas como a Palavra de Deus inspirada na qual ele se revela ao homem,
passando a ser considerada ‘‘como um registro do desenvolvimento evolucionista
da consciência religiosa de Israel (e mais tarde da Igreja)’’. (Nota 13). O
conceito liberal de inspiração das Escrituras só é objetivo no sentido de as
Escrituras serem o objeto da inspiração. No mais, é subjetivo: elas são o
sujeito: elas é que inspiram, com o ‘‘seu poder de inspirar experiências
religiosas’’. (Nota 14)
Na prática, portanto, a principal característica da escola
crítica de interpretação é o pressuposto de que as Escrituras devem ser
estudadas do mesmo modo que as demais literaturas antigas, pelo emprego das
mesmas metodologias. Esta postura, crítica, com sua ênfase apenas no caráter
humano das Escrituras, resultaram em uma série de metodologias críticas de
caráter histórico ou linguístico que vêm sendo empregadas na interpretação das
Escrituras.
A crítica ou história da tradição é uma dessas metodologias,
cuja pretensão é ‘‘descobrira história percorrida por determinado trecho, no
âmbito da tradição oral, ou seja, na fase anterior à sua fixação literária mais
antiga’’. (Nota 15). Isto é: estudar como os eventos históricos e ensinos
originais de Jesus teriam dado origem às diversas formas de tradições orais até
o seu registro escrito. Seu propósito é ‘‘destradicionalizar’’(semelhante à
desmitologização de Bultmann) os Evangelhos, em busca do ‘‘fato’’ou ensino
‘‘original’’(Nota. 16)
A crítica da forma é outra metodologia crítica. Sua
pretensão é classificar os escritos do Novo Testamento em gêneros literários e
identificar as tradições que teriam dado origem às fontes empregadas pelos
autores do Novo Testamento. Segundo os teóricos da crítica da forma, (nota 17),
os evangelhos provêm de tradições orais não cronológicas existentes (chamadas
de paradigmas, novelas, lendas, mitos e exortações). Posteriormente essas
tradições orais teriam sido organizadas em relatos cronológicos escritos que
foram empregados pelos evangelistas. Mas a teoria é extremamente especulativa,
visto que não explica como esses gêneros teriam surgido e se desenvolvido. Além
disso, não existe registro histórico dessas supostas coleções não cronológicas.
(Nota 18).
Outra metodologia desenvolvida pela escola crítica de
interpretação é a crítica das fontes. De acordo com esta teoria há muito pouco
nos evangelhos (especialmente nos sinópticos) originário dos evangelistas. Eles
teriam sido mais coletores e editores dos diversos relatos (tradições escritas)
existentes sobre a vida de Jesus do que propriamente autores. A teoria se
baseia nas palavras de Lucas no início do seu evangelho (cf. Lc 1.1, 3), e na
observação de que os evangelhos de Mateus e Lucas normalmente concordam
literalmente com o evangelho de Marcos (ambos ou cada um isoladamente),
enquanto que raramente concordam entre si, quando discordam de Marcos. A
conclusão mais comum a que se chegou é que Mateus e Lucas foram copiados de
Marcos (quando concordam com ele) e de outra suposta fonte chamada Q, quando
concordam entre si, mas discordam de Marcos.
Não há, contudo, concordância entre os críticos da forma. As
evidências internas (baseadas em supostas inconsistências cronológicas,
estilísticas, teológicas e históricas) a favor dessa teoria são bastante
limitadas, subjetivas, ambíguas e contraditórias com as evidências externas
(afirmativas dos pais da igreja que apontam de modo unânime em direção oposta).
(Nota 19). Muitas outras possibilidades tornam qualquer conclusão extremamente
incerta. Marcos poderia ter usado Mateus e Lucas; os três evangelistas podem
ter usado as mesmas fontes; Jesus pode ter repetido ensinos e parábolas com
palavras diferentes em ocasiões diferentes, etc. A verdade é que não se sabe com
exatidão como os evangelistas escreveram seus evangelhos.
Parece evidente que pelo menos um, Lucas, lançou mão de
algumas fontes, mas conforme ele mesmo afirma, ele e suas fontes basearam-se no
que lhes transmitiram ‘‘testemunhas oculares’’ dos acontecimentos (Lc 1.2).
Entretanto, não há meios de saber concretamente que fontes foram estas e até
que ponto e como as usaram. Isso torna a crítica da forma necessariamente
especulativa. De concreto, mesmo, têm-se os Evangelhos, como Palavra de Deus
escrita por homens inspirados (movidos) pelo Espírito Santo, fundamentados no
que testemunharam e no testemunho de outras testemunhas oculares, e, portanto,
fidedignas.
Além dessas metodologias, há também a crítica da redação ,
que se propõe a estudar como os evangelistas teriam usado (editado) as suas
supostas fontes na composição dos evangelhos; isto é, que mudanças peculiares
(ou contribuições) teriam sido introduzidas pelos evangelistas às fontes que
usaram, e com que propósito (especialmente teológico). (Nota 20) Mas, a que
conclusões seguras se podem chegar com a crítica da redação, se nem mesmo há
certeza alguma com relação ao uso das fontes?
Por fim, pode ser mencionado o criticismo histórico . Sua
pretensão é avaliar a historicidade das narrativas bíblicas, ou, como escreve
Marshall, ‘‘...testar precisão do que se propõe ser uma narrativa
histórica.’’(Nota 21) Mas este propósito não é somente pretensioso
(inconsistente do ponto de vista bíblico); é também tendencioso, na medida em
que explora as aparentes contradições internas (especialmente entre as
passagens paralelas dos evangelhos) e externas (com fontes seculares e
históricas); e encara os relatos de ocorrências sobrenaturais por uma
perspectiva altamente especulativa. Assim, o criticismo histórico não vê os
textos paralelos como complementares, mas como contraditórios; atribui às
fontes seculares autoridade superior à das Escrituras; rejeita as intervenções
sobrenaturais; e considera muitas narrativas históricas como invenção da
igreja, novelas ou mitos.
Os resultados de todas estas metodologias críticas são
inseguros, questionáveis e dúbios, e sua aplicação prática extremamente
limitada (se possível). São hipóteses construídas sobre especulações
infrutíferas que não contribuem em praticamente nada para a compreensão do
texto do Novo Testamento, a não ser para lançar dúvidas sobre a sua inspiração,
autoridade e inerrância. (Nota 22).
Não obstante, parece que a corrente humanista de
interpretação das Escrituras tem começado a prevalecer em um número considerável
de seminários teológicos no nosso país. A ênfase hermenêutica destes seminários
está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das
Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. A
metodologia predominante tem sido o método histórico-crítico. E, em virtude da
impossibilidade de conciliar este método com as doutrinas bíblicas da
inspiração, autoridade, suficiência, inerrância e preservação das Escrituras,
muitos destes seminários têm se afastado cada vez mais da verdadeira fides
reformata (fé reformada).
Como os resultados das metodologias críticas empregadas pelo
método históricocrítico são quase sempre infrutíferos, e sua aplicação prática
extremamente limitada, não é incomum que o produto final de muitos dos nossos
seminários seja formandos despreparados para o ofício de ministros da Palavra.
Nesta condição, não é de estranhar que, como observou Lopes, ‘‘...os púlpitos
de bom número das igrejas evangélicas destilam uma espécie de sermão onde pouca
ou nenhuma atenção se dá ao sentido original do texto bíblico’’. (Nota 23).
Destilam também, acrescento, teologias imprecisas e inconsistentes, que pouco
edificam os membros de suas congregações.
C. Corrente Reformada
A corrente reformada de interpretação das Escrituras (objeto
específico deste estudo) posiciona-se entre as duas correntes extremas já
consideradas. Ela (a corrente reformada) caracteriza-se pelo equilíbrio
resultante do reconhecimento do caráter divino-humano das Escrituras. Em função
disso, os intérpretes desta corrente reconhecem a necessidade da iluminação do
Espírito falando através da própria Palavra, ao mesmo tempo em que admitem a
necessidade de interpretação gramatical e histórica das Escrituras. A
interpretação reformada rejeita, por um lado, a alegorização indevida das
Escrituras e, por outro, repudia uma postura primariamente crítica com relação
a elas.
1. Método Gramático-Histórico
O método de interpretação adotado e praticado pela corrente
reformada ou protestante conservadora é conhecido pelo nome de método
gramático-histórico; o método de interpretação honrado pelo tempo, no dizer de
M. Lloyd-Jones. Trata-se de um método fundamentado em pressuposições bíblicas
quanto à própria natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos
linguísticos e históricos coerentes com o caráter divino-humano da Palavra de
Deus.O método de interpretação adotado e praticado pela corrente reformada ou
protestante conservadora é conhecido pelo nome de método gramático-histórico; o
método de interpretação honrado pelo tempo, no dizer de M. Lloyd-Jones.
Trata-se de um método fundamentado em pressuposições bíblicas quanto à própria
natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos linguísticos e
históricos coerentes com o caráter divino-humano da Palavra de Deus.O
2. Precursores: Escola De Antioquia E Agostinho
Os reformadores não criaram este método de interpretação
bíblica do nada. Eles se fundamentaram no próprio ensino bíblico sobre a sua
natureza e na prática apostólica. As origens da interpretação reformada também
são encontradas na escola de Antioquia da Síria, que pode ser considerada
precursora do método gramático-histórico. Seus principais representantes foram
Teodoro de Mopsuéstia (†428) e João Crisóstomo (†407), o ‘‘Boca de Ouro’’. Eles
rejeitaram tanto o literalismo judeu, como o alegorismo de Alexandria;
defendiam uma interpretação literal e histórica das Escrituras; criam na
realidade histórica dos eventos descritos no Antigo Testamento; defendiam a
unidade das Escrituras e admitiam o desenvolvimento ou progressividade da
revelação. (Nota 24).
Agostinho também pode ser considerado precursor do método
gramático-histórico de interpretação bíblica. Ele não parece haver sido
consistente na aplicação do seu método. De fato, sua distinção de quatro
sentidos das Escrituras foi tão influente que prevaleceu por toda a Idade
Média, como já foi visto. Apesar disso, ele estabeleceu importantes princípios
de interpretação bíblica no seu manual de hermenêutica e pregação, De Doctrina
Chistiana. Eis alguns desses princípios: (Nota 25)
1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da
Palavra de Deus.
2. Deve-se considerar o sentido literal e histórico do
texto.
3. O Antigo Testamento é um documento cristológico.
4. O propósito do expositor é descobrir o sentido do texto e
não atribuir-lhe sentido.
5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretação das
Escrituras.
6. O texto não deve ser estudado isoladamente, mas no seu
contexto bíblico geral.
7. Se o texto for obscuro, não pode se tornar matéria de fé.
As passagens obscuras devem dar lugar às passagens claras.
8. O Espírito Santo não dispensa o aprendizado das línguas
originais, geografia, história, ciências naturais, filosofia, etc.
9. As Escrituras não devem ser interpretadas de modo a se
contradizerem. Para isso, deve-se considerar a progressividade da revelação.
3. Princípios Reformados
Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiástica
do século XVI foi o resultado de outra reforma: uma reforma
hermenêutico-exegética. (Nota 26). De fato, a redescoberta das doutrinas
bíblicas pelos reformadores e a reforma eclesiástica decorrente foram
precedidas por um evidente rompimento com os princípios hermenêuticos e com a
prática exegética medieval.
A. A Única Regra Infalível De Interpretação
A Reforma Protestante rejeitou veementemente a hermenêutica
alegórica medieval, e registrou seu repúdio em alguns dos seus principais
símbolos de fé. Eis um exemplo: o parágrafo IX do capítulo I da Confissão de Fé
de Westminster (idêntico ao mesmo parágrafo da Confissão de Fé Batista de
1689):
A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma
Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido
de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse
texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais
claramente.
Este parágrafo estabelece o princípio reformado fundamental
de interpretação bíblica, segundo o qual a única regra infalível de
interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta,
elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O que estas confissões querem
dizer com essa afirmativa é que o sentido de uma passagem obscura não pode ser
autoritativamente determinado nem por tradição, nem por decisão eclesiástica,
nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas sim, unicamente,
por outras partes das Escrituras que expliquem e esclareçam o seu sentido.
B. Repúdio À Interpretação Alegórica Medieval
O parágrafo acima, citado da Confissão de Fé, também
representa o repúdio dos reformadores ao método de interpretação quádrupla
medieval. Em lugar dele, os reformadores ensinavam que cada passagem das
Escrituras tem um só sentido, que é literal — a não ser que o próprio contexto
ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada
ou metafórica.
John Colet (c. 1467-1519) foi um dos primeiros reformadores
a romper com o método alegórico medieval, ao expor em 1496, em Oxford, as cartas
do apóstolo Paulo em seu sentido literal e no seu contexto histórico. (Nota
27). Três anos depois, em 1499, ele já sustentava o princípio de que as
Escrituras não podem ter senão um único significado: o mais simples. (Nota 28)
Lutero também rejeitou a interpretação alegórica. Defendeu
que ‘‘nós devemos nos ater ao sentido simples, puro e natural das palavras,
como requerido pela gramática e pelo uso do idioma criado por Deus entre os
homens.’’ (Nota 29)
Quanto a Calvino, sua aversão à interpretação alegórica era
de tal ordem que ele chegou a afirmar ser satânica, por desviar o homem da
verdade das Escrituras. ‘‘É uma audácia próxima do sacrilégio’’,escreveu ele,
‘‘usaras Escrituras ao nosso bel-prazer e brincar com elas como com uma bola de
tênis, como muitos antes de nós o fizeram.’’ (Nota 30).
C. Necessidade De Iluminação Espiritual
Os reformadores reconheceram a natureza divino-humana das
Escrituras, e enfatizaram o papel do Espírito Santo no processo de
interpretação da sua mensagem. Para eles, o impedimento maior estava na
cegueira espiritual do homem, em função da queda, e não nas Escrituras. Tanto
para Lutero, como para Calvino, (Nota 31) nenhuma pessoa poderia interpretar
corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo através da
própria Palavra. Eis as palavras de Lutero sobre o assunto:
...a verdade é que ninguém que não possui o Espírito de Deus
vê um til sequer do que está na Escritura. Todos os homens têm seus corações
obscurecidos, de modo que, mesmo quando discutem e citam tudo o que está nas
Escrituras, não compreendem ou conhecem realmente qualquer assunto dela... O
Espírito é necessário para a compreensão de toda a Escritura e cada uma de suas
partes. (Nota 32)
D. Interpretação Gramatical E Histórica
Por outro lado, reconhecendo a natureza histórica das
Escrituras, os reformadores defendiam a sua interpretação literal, enfatizando
também a importância da gramática e da história na compreensão da sua mensagem.
Melanchton foi um dos responsáveis pela ênfase reformada na
exegese gramatical. Em um discurso proferido em 1518 em Wittenberg, ele exortou
seus ouvintes a recorrerem às Escrituras nas línguas originais, onde
encontrariam Cristo, livre das discordâncias dos teólogos latinos. Lutero ficou
tão impressionado com o que ouviu, que passou a assistir às aulas de grego de
Melanchton, dedicando-se com afinco ao estudo do grego. (Nota 33)
Mas foi Calvino, sem dúvida, quem melhor praticou a exegese
gramatical e histórica. Ele tem sido considerado por muitos o maior intérprete
da Reforma e um dos maiores de todas as épocas. A profundidade, lucidez e
erudição dos seus comentários, que abrangem praticamente todos os livros da
Bíblia, (Nota 34) continuam a ser admirados e considerados atuais e raramente
igualados. (Nota 35) E não se pense que essa é a opinião apenas dos calvinistas
(um compreensível exagero presbiteriano deste autor). Mesmo Jacobus Arminius
(1560-1609), um dos mais conhecidos opositores das doutrinas de Calvino,
reconhecia a excelência dos comentários dele, e chegou a recomendá-los como
incomparáveis. Eis suas palavras:
Depois da leitura das Escrituras..., e mais do que qualquer
outra coisa,... eu recomendo a leitura dos Comentários de Calvino... Pois
afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável, e que seus
Comentários são mais valiosos do que qualquer coisa que nos tenha sido legada
nos escritos dos pais — tanto assim que atribuo a ele um certo espírito de
profecia no qual ele se encontra em uma posição distinta acima de outros, acima
da maioria, na verdade, acima de todos. (Nota 36)
E. Desenvolvimento Do Método Gramático Histórico
Estes e outros princípios de interpretação praticados pelos
reformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães, suíços, franceses
e ingleses) viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo
em geral desde então, (Nota 37) e se tornaram conhecidos pelo nome de método
gramático-histórico de interpretação bíblica.
Foi este o método empregado pelos puritanos no séc. XVII;38
pelos líderes evangélicos do século XVIII na Europa e América do Norte (tais
como George Whitefield e Jonathan Edwards); pelo anglicano J. C. Ryle, pelo
batista Charles Spurgeon na Inglaterra e pelos presbiterianos Charles e
Alexander Hodge no Seminário de Princeton nos EUA, no século passado; e pelos
intérpretes e pregadores protestantes (luteranos, anglicanos, presbiterianos e
batistas) ortodoxos deste século.
Os manuais de hermenêutica de Davidson, Patrick, Imer,
Terry, Berkhof, Berkeley, Mickelsen e Ramm pertencem todos a essa escola de
interpretação bíblica, bem como os comentários bíblicos de Keil e Delitzsch,
Meyer, Matthew Henry, Lange, Alford, Ellicot, Lightfoot, Hodge, Broadus e
muitos outros.
O método gramático-histórico de interpretação bíblica
desenvolvido pela corrente reformada é, de fato, a hermenêutica honrada pelo
tempo. É um método coerente com a natureza das Escrituras; fundamenta-se em
pressuposições teológicas bíblicas; e emprega princípios gerais adequados e
métodos linguísticos e históricos extremamente frutíferos.
Observações
A teologia e a práxis eclesiástica deformadas do
evangelicalismo moderno clamam por reforma; clamam por um novo retorno às
Escrituras. A corrente espiritualista de interpretação bíblica já foi colocada
na balança e achada em falta: as hermenêuticas alegórica, intuitiva e
existencialista, por não darem a devida consideração ao caráter humano das
Escrituras, abrem espaço para todo tipo de exesegese. O caráter fantasioso
destas hermenêuticas acaba desviando a atenção do leitor ou ouvinte do
verdadeiro sentido do texto bíblico (aquele que o Espírito Santo intentou
transmitir).
A corrente humanista de interpretação bíblica também já foi
colocada na balança e achada em falta: a hermenêutica dos saduceus, dos
humanistas renascentistas e da escola crítica, por não darem a devida atenção
ao caráter divino das Escrituras, tendem a atribuir à razão a autoridade que
pertence à revelação. Este caráter racionalista da hermenêutica humanista induz
ao liberalismo teológico que acaba negando a legítima fé reformada.
A corrente reformada de interpretação bíblica também já foi
colocada na balança da história, mas foi aprovada com louvor: o método
gramático-histórico fundamentado no próprio ensino bíblico sobre as Escrituras
e desenvolvido e aplicado pelos reformadores e seus legítimos herdeiros, por
dar a devida atenção tanto ao caráter divino como ao caráter histórico das
Escrituras, promoveu as reformas teológicas e eclesiásticas mais profundas já
experimentadas pela igreja cristã.
Durante a Reforma Protestante do século XVI e a reforma
puritana do século XVII, por exemplo, muito entulho religioso teve que ser
rejeitado. Muitas doutrinas e práticas eclesiásticas acumuladas no decurso dos
séculos tiveram que ser abolidas, quando reformadores e puritanos dedicaram-se
com labor e oração a perscrutar as Escrituras para ver se as coisas eram de
fato assim. A hermenêutica reformada das Escrituras já demonstrou ter a
capacidade de revelar a falácia de doutrinas e práticas eclesiásticas
‘‘fundamentadas’’em interpretações alegóricas, intuitivas, existencialistas e
racionalistas.
O evangelicalismo brasileiro tem acumulado nos últimos cem
anos — especialmente nas últimas décadas — considerável entulho religioso. Não
é possível entrar em detalhes aqui. Mas a proliferação de teologias
estranhíssimas, práticas litúrgicas inusitadas e condutas eclesiásticas no
mínimo excêntricas, já descaracterizaram a fé e o culto reformados. Mesmo
denominações historicamente reformadas têm absorvido doutrinas e práticas de
culto inconsistentes com o ensino bíblico e com seus símbolos de fé. Esta
descaracterização se explica, pelo menos em parte, pelo emprego das hermenêuticas
deficientes que estivemos considerando.
Não é tempo, portanto, de reconsiderarmos os rumos que
estamos tomando ? De nos desvencilharmos das hermenêuticas alegóricas,
intuitivas, existencialistas e racionalistas, e de retornarmos à hermenêutica
reformada aprovada pela história ? Não é tempo de fazermos da oração uma
prática hermenêutica, suplicando pela iluminação do Espírito Santo; e de
labutarmos no estudo diligente das Escrituras, dando a devida atenção à língua
e às circunstâncias históricas em que foram escritas ?
Orare e labutare é o caminho. Não é um caminho fácil nem
mágico. Requer sinceridade e diligência. Talvez não forneça interpretações
esplêndidas nem realce a criatividade, imaginação e genialidade do pregador.
Mas é o antigo e bom caminho aprovado com louvor pela história. Ele deixa que a
verdade de Deus opere e que as Escrituras falem com poder e graça, promovendo
profundas reformas teológicas e eclesiásticas.
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